Quais considera que foram as maiores conquistas dos últimos dois mandatos? E o que falta finalmente fazer neste derradeiro capítulo?
Aquilo de que sinto mais orgulho é de poder participar numa nova etapa de um novo modelo de gestão. Em 2013, o município de Gaia encabeçava a lista dos mais problemáticos do ponto de vista financeiro. Foi um tempo de poder local mais infraestruturalista, onde o pressuposto era fazer, sem o filtro da sustentabilidade ou até da racionalidade. Os autarcas eram medidos pela quantidade de obra que faziam. Acho que esse tempo passou e hoje julgo que é possível mostrar que se pode ter investimento, filtrado pelo crivo da sustentabilidade. É possível que os municípios evoluam para um conjunto de novas responsabilidades que já não têm nada que ver com as obras faraónicas ou megalómanas, mas mais com os níveis de proximidade com as pessoas, aquilo que se designam de políticas sociais municipais. Os municípios têm hoje responsabilidade na área dos transportes, da habitação, das atividades extracurriculares nas escolas. Há uma mudança de paradigma. É uma nova etapa, o que não quer dizer que seja melhor ou pior. Acho que o poder local tem vindo a evoluir ao longo destes 50 anos, há menos expansionismo, exibicionismo, há mais sustentabilidade. Esse é, para mim, um modelo de gestão que se revelou virtuoso, porque hoje o município de Gaia é uma referência no que diz respeito ao endividamento, ao contencioso.
Os munícipes reconhecem esse trabalho que é, por vezes, invisível?
Julgo que se os resultados eleitorais significarem alguma coisa — e eu acho que eles significam —, é possível perceber que as pessoas incorporaram e interiorizaram essa questão. Já lá vai o tempo em que nos exibíamos com obras numa lógica exibicionista. As pessoas hoje percebem que quem paga são elas. Quando há desnorte na gestão, quando há corrupção no poder local e central, no fim quem paga são as pessoas. Houve, ao longo dos tempos, uma mudança de mentalidades e esta evolução dá-se não só à conta dos autarcas mas também das pessoas que valorizam isso. Se não fosse assim, provavelmente não estaria cá.
Para este mandato, assumiu querer colocar Gaia no lote “das mais promissoras da Europa”. Como?
Falamos de várias vertentes e essa é uma ambição que não se resolve em quatro anos, mas acho que é uma na qual temos que nos lançar. Gaia era tida como uma zona dormitório e isso tem vindo a mudar. É preciso dar o passo seguinte e isso passa por um novo envolvimento das câmaras em áreas que não são típicas e que, do ponto de vista de relações institucionais, levantam até alguns perigos. Hoje, a Câmara de Gaia é, queiramos ou não, um agente público de diplomacia económica. Eu recebo empreendedores, fundos, gestores de investimentos que tentam investir no domínio público através das concessões, mas também a investir numa lógica privada sob alçada da câmara. Um município que queira evitar pendularidades e ter deslocações casa-trabalho de maior proximidade precisa de assumir este desafio. Só que para o assumir o que não é fácil, é necessário acabar com este clima de suspeição que muitas vezes existe, como se a atividade pública e privada tivessem um limite onde não há possibilidade de se tocarem. Estou convencido de que as grandes cidades, cá ou lá fora, são cidades que não só estão à espera de quem as contacte, mas são elas próprias a ir bater a portas. Isso gera, inevitavelmente, receios e suspeições, num país com este modelo de contratação pública e estes modelos inspetivos. É um país que duvida de si próprio todos os dias. Acredito que, para não darem azo a nenhum tipo de presunções de relações perversas, há muitos autarcas que, em muitos momentos, optam por não arriscar.
Como é que se reduzem ou eliminam essas suspeições?
Protegendo-nos com modelos inspetivos que não venham já prefigurados para andarem à procura de alguma coisa, que se desanimam se não encontrarem nada. Devemos passar a ter mais respeito uns pelos outros, partirmos do pressuposto de seriedade entre todos. Mas, ao mesmo tempo, quando se encontrem situações perversas, que sejamos capazes de agir de forma clara. O que se sente é que os populismos dos dias de hoje ameaçam a democracia pelo constante questionamento dos atores locais, da generalização de que somos todos iguais, de que roubam, mas fazem. Isto é algo que tem que acabar porque degrada a democracia, degrada a imagem que temos uns dos outros, mas pior de tudo, é algo que degrada o nosso próprio modelo.
De que forma?
Partindo deste pressuposto, acabamos por construir um modelo de desenvolvimento assente numa hiper-mega-burocracia, em mecanismos altamente complexos que demoram tempos infinitos, com instância de controlo muito demoradas. Damos por nós a gerir procedimentos em vez de gerir modelos. Os países mais avançados são países nos quais existe uma genuína vontade de combater todas as formas de corrupção, mas ao mesmo tempo são países que partem da confiança, da flexibilidade na gestão. Hoje está provado que os países mais burocráticos e administrativistas, com leis mais complexas, não são os países mais transparentes. A transparência não é o produto de uma lei hiper-mega-complexa, é o produto de um modelo de gestão onde nos sentimos todos fiscalizados, mas em primeiro lugar, sentimo-nos comprometidos. É preciso mudar essa mentalidade nos atores institucionais, no povo. É que, no fim, os políticos saem mal, mas os técnicos da administração local acabam por viver num constante pânico, no momento de dar a sua assinatura. Precisamos de uma nova cultura democrática de maior exigência, mas também de maior confiança uns nos outros.
Nesse plano da imagem do poder local, discutiu-se muito a questão da limitação de mandatos. Acredita que a decisão contribuiu para reabilitar essa imagem?
Sim, acho que ajudou. Aqueles a que chamávamos os dinossauros do poder local vieram a estar muito ligados a momentos de grandes questionamentos e, por aí, diria que sim. No entanto, precisa de um ajustamento: a alteração da duração dos mandatos. Seriam igualmente 12 anos com limitações de mandatos para todos — e, já agora, também para os senhores deputados, porque esse é um bom exemplo de legislar em causa própria. O que acontece é que no atual modelo de governação, um mandato de quatro anos é um mandato que passa muito rapidamente e que dificulta o pensamento estratégico. Quando as pessoas estão a tomar posse e vão iniciar os projetos, vão iniciar os que tenham possibilidade de ser inaugurados naqueles três anos e meio. Depois de todos os procedimentos iniciais, ficamos com três anos para lançar, por exemplo, um procedimento simples como o da construção de um pavilhão. Entre lançar o concurso, ir ao Tribunal de Contas e depois lançar a obra, resta rezar muito para poder inaugurá-la.
Os técnicos da administração local vivem num constante pânico no momento de dar a sua assinatura
Então qual seria a melhor solução?
Hoje em dia, no quadro jurídico que temos, quatro anos não são nada. Aceitaria perfeitamente um modelo de 5+5 ou de 6+6. Cumpria-se a limitação, mas dava- se tempo e esse tempo ajuda a ter pensamentos organizados. Andamos na gestão do dia a dia e rapidamente percebemos que ao fim de um ano e meio já estamos a preparar eleições. Temos que pensar em fazer coisas no horizonte de um ano e meio.
Falando de concretizar objetivos, os municípios têm agora outra ajuda, os fundos do PRR, que disse querer aproveitar para potenciar, por exemplo, a habitação no concelho. De que forma é que pretende fazê-lo e que outras áreas poderão sair beneficiadas?
A primeira de todas é a mobilidade, porque é um dos aspetos mais dramáticos que os cidadãos vivem hoje em dia. Basta ver a valorização do imobiliário nas imediações do metro no resto do concelho para perceber quão estratégica é a mobilidade para os jovens irem à faculdade, para as pendularidades de quem trabalha. Esse foi o grande nosso enfoque. Focamo-nos depois também no hospital e fomos contemplados com menos dinheiro do PRR do que aquele que imaginávamos, mas a compensação fez-se pelo quadro comunitário. Depois vem a habitação, sendo que Gaia é o segundo município com o maior contrato na área da habitação com 143 milhões de euros. Talvez este venha a ser um bom exemplo de ter recursos e não os conseguir gastar. O primeiro concurso que lançámos, para metade do valor global, 70 milhões, julgo que vamos adjudicar pouco menos de 20 milhões e está aqui um problema. Como é que se explica isso às pessoas que estão aflitas? Pessoas que fruto da especulação imobiliária não têm capacidade para pagar a renda. Temos uma nova vaga de desalojados da especulação imobiliária. Como é que lhes dizemos que, tendo o país a maior verba alguma vez havida para a área da habitação, não a vamos conseguir gastar? Acho que vamos todos passar mal quando, daqui a dois ou três anos, tivermos que chegar ao dinheiro que tivermos disponível e, criativamente, tivermos que solucionar a incapacidade que tivemos de o gastar. Lá vamos nós entrar no sistema de overbooking, na deslocação do dinheiro de rubricas estratégicas para as chamadas obras de duvidosa prioridade, que não são mais do que coisas feitas para não devolver dinheiro. Ou vamos devolver dinheiro numa área crítica como a habitação? É necessário um quadro normativo específico para esta área.
Ainda há tempo para o fazer?
Acredito que sim. Acho que será necessário fazer um ajustamento. É necessária mais fiscalização, boa fiscalização, mas isso não significa uma fiscalização de dentes cerrados, de presunção de que todos são corruptos. Uma fiscalização educativa, pedagógica, onde nos consideramos todos sérios até prova em contrário. Nunca compreendi como é que num país onde tanto se debate a corrupção, tenha praticamente passado despercebido, naquele período da troika, a fusão ou extinção de uma entidade que era absolutamente marcante para o poder local e para os autarcas, neste caso a IGAL. Alguém acredita, volvido este tempo, que ficámos melhor sem a IGAL ou com a IGAL fundida na IGF? Somos um país que pugna muito por valorizar a transparência, mas basta ter uma crise e fundem- se ou extinguem-se entidades de acompanhamento e de auditoria com uma importância enorme. E nem é para proteger os políticos, mas para proteger os técnicos, os juristas, porque hoje, um funcionário dirigente superior, ao pegar numa caneta, ela queima.
Assume-se como um adepto da regionalização. Que vantagens é que acredita que esse modelo poderá trazer não só para o país, mas igualmente para as autarquias?
É um instrumento de desenvolvimento. Somos um país com uma história municipalista e não ignoro isso, mas acho que os desafios de hoje já não são apenas desafios municipalistas. Temos, nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, discussões entre municípios que partilham questões, respostas, ao nível dos transportes, do ambiente, do lazer, das pendularidades. São coisas que não podem ficar dentro da lógica da fronteira do município; aquilo a que tantas vezes chamamos nos grandes seminários as políticas multinível. Chegados à prática, só temos políticas uninível, de âmbito municipal. A regionalização vem dar essa resposta. Claro que podem dizer que essa resposta pode ser dada, como acontece, pelas CCDR. Parcialmente, pode, mas não é a mesma coisa. Falta legitimidade democrática e assim é difícil levar avante uma estratégia. A regionalização traz esta dimensão democrática. Passa por implementar um novo modelo de organização para o país, um que torna o poder político mais próximo das pessoas e os recursos mais próximos do poder político, mais distribuídos pelo território porque, de outra forma, o que temos é um centralismo, que tem tido algumas vantagens em alguns domínios, mas que não tem sido a melhor solução para o país.
Como é que dizemos às pessoas que, tendo a maior verba alguma vez havida para a área da habitação, não a vamos conseguir gastar?
A descentralização de competências é um processo absolutamente transformador a nível das autarquias locais. Como é que vê todo este processo?
Gaia aderiu apenas para já à educação e por razões que tiveram que ver com uma imposição. Defendemos um trabalho mais minucioso, porque todos os balanços que fazemos com os dados disponíveis, vão no sentido de reconhecer que o município vai sair claramente prejudicado do ponto de vista financeiro. O envelope financeiro não acompanha, nem de perto, nem de longe, as competências. A lei prevê a criação de uma comissão de acompanhamento e acho que é o tempo certo para isso, para fazer esse trabalho e, no final do primeiro ano, verificar o que esteja menos correto e aperfeiçoar. Não é um processo fechado. Depois, assumiremos, lá mais para o final de 2022, a saúde e a ação social, porque a simultaneidades dos processos cria algumas dificuldades. Gaia tem 2200 funcionários. Com a descentralização da educação, entram pela porta mais 1200. Quando chegar a saúde, vamos ficar com o dobro dos que já temos. Queremos fazer tudo de forma gradual.
Quais foram os grandes erros cometidos no planeamento de todo este processo?
Todas as alterações são complexas. Creio que o maior problema é o do máximo denominador comum. O processo foi feito de maneira a ser igual para todos. Ora, pensar que um município do centro da área metropolitana de Lisboa ou do Porto pode ter o mesmo tipo de abordagem que têm municípios pequenos do interior, é prejudicar o processo e esses próprios municípios mais pequenos. Claro que nunca seria favorável a uma espécie de classificação de municípios, mas estaríamos em condições de ter ritmos diferentes, de forma a conseguirmos ajudar os mais pequenos a conseguirem acompanhar o processo. Pelo contrário, estamos a fazê-lo no máximo denominador comum, que é basicamente o patamar acima do qual já nem todos acompanham e, abaixo do qual, ficamos numa lógica absolutamente minimalista. Parece-me ser esse o principal problema que gerou grandes dificuldades.
Mostrou algumas reservas sobre o acréscimo de verbas que as autarquias terão que suportar. O que é que deveria ser feito relativamente a essa questão?
Está nas nossas contas. Nós, na área da educação, teremos uma diferença de cinco a seis milhões de euros, o que é muito significativo. A solução está contemplada na lei, que prevê uma comissão de acompanhamento que vai fazer esta monitorização e, ao fim de um ano, irá entregar um balanço para que tudo possa ser corrigido. É verdade que tenho esta preocupação por estar a gerir um município grande, ao qual, se tirarmos cinco ou seis milhões na educação e mais dois ou três na saúde, daqui a pouco ficamos a gerir défices de descentralização. Mas estou convencido de que isto vai acontecer durante um ano, porque todos os dados que temos do governo ou da Associação Nacional de Municípios vão no sentido da tranquilidade de que, no final do ano, faremos o balanço, que os municípios possam ser ressarcidos. Quem recebeu a mais, devolve. Quem recebeu a menos, tem que ver corrigida a diferença.
Gaia irá acolher o Colóquio Nacional da ATAM de 2022. O que espera do evento?
Quando tivemos esta oportunidade, as nossas portas abriram- -se completamente. Acho que o colóquio vai no sentido de tudo o que disse. Não há municípios que entrem num novo ciclo se isso não decorrer também dos seus próprios ativos e recursos humanos. Acho que o colóquio é uma oportunidade que temos de começar a pensar num novo modelo de cidade, numa forma nova de relação com o cidadão, de fugir daquela tentação populista de crítica constante a tudo o que é funcionário público e da administração local. É uma oportunidade de ouro para colocar na agenda novos temas, a sustentabilidade do modelo de gestão, os novos desafios da diplomacia económica, a descentralização, a regionalização, o impacto que tudo isto possa ter na discussão das temáticas da transparência e da corrupção. Gaia sente-se comprometida com estas temáticas e receber o colóquio é o corolário do que nós próprios queremos fazer para dar visibilidade a estas causas. Acho que vai ser um bom momento, espero que o seja para os associados da ATAM e que possa ser uma marca na vida da associação, porque garantidamente será também uma marca na vida do município.
Entrevista publicada no número 434 da revista O Municipal.